Os 500 anos da reforma

Entrevista: Silvio Meincke 1957-61

P.: Como são comemorados os 500 ANOS DA REFORMA na Alemanha? R: Intensamente, não só no âmbito da Igreja Luterana.

P.: Queres dizer que a Reforma é tema para todo o povo alemão? R.: Sim, e não poderia ser diferente. A Reforma Protestante foi um movimento amplo que envolveu todos os âmbitos da vida e todos os setores da organização social.

P.: E por que a Alemanha? R.: O Movimento dos Reformadores vinha de longe e teve vários protagonistas em diferentes países. Lutero teve antecessores, entre eles João Huss (República Checa, século XIV), que foi queimado vivo no Concílio de Constança (Alemanha), cem anos antes. Mas a Alemanha foi o palco principal dos acontecimentos, e seu porta voz principal foi o monge alemão Martim Lutero. O povo alemão, em geral, e não somente as pessoas ligadas à Igreja Luterana, tem certo orgulho do seu ilustre Reformador, mas ressalta também seus equívocos e algumas das suas afirmações que hoje nos chocam.

P.: Qual é a principal mensagem dos Reformadores? R.: Todos os ensinamentos dos Reformadores sobre a fé e a ética cristãs giram em torno da JUSTIFICAÇÃO POR GRAÇA E FÉ somente. Isso significa que eles proclamam a bondade, a misericórdia, o amor e a graça de Deus, no lugar da sua ira condenatória, da sua severa justiça vingativa, do seu controle onipresente, dos quais o povo tinha enorme medo durante toda Idade Média. E muitos chefes da Igreja, que também eram príncipes, governadores e homens de guerra, inclusive com exércitos próprios, usavam o medo do povo para oprimi-lo e explorá-lo; um povo pobre, analfabeto, cheio de superstições, de tabus e com medo de tudo: medo das seguidas guerras, das pestes implacáveis, da morte sempre iminente e do aguilhão do diabo.

P.: A justificação por graça e fé proclamada pelos reformadores veio para libertar as pessoas desses medos? R.: Podemos substituir a palavra JUSTIFICAÇÃO pela palavra ACEITAÇÃO. Os Reformadores –baseados sempre e somente nas Sagradas Escrituras – daí o lema “sola Scriptura” [somente a Escritura] – ensinavam: Tu és aceito por Deus, somente pela graça – “sola gratia” [somente a graça] – porque Deus declara-te justificado, em sua soberana decisão de gratuidade, ainda que não sejas justo por forças próprias, ainda que tenhas limitações, ainda que tropeces, ainda que cometas equívocos. Tu apenas precisas aceitar com fé esse presente da aceitação – “sola fide” [somente a fé] – sem acrescentar nada para merecê-lo. Não precisas acumular méritos, com sucessos, grandes realizações, sabedoria, fama, perfeição piedosa, ou com tuas curvas graciosas, tuas compras consumistas, teus títulos, tua origem nobre ou qualquer outro mérito. A aceitação não é uma conquista tua, mas é atribuição, é dádiva. E, por ser dádiva, ninguém poderá tirá-la de ti. É Deus que a concede renovadamente porque, diante dele, és digno de aceitação por graça, não pelos teus merecimentos e tuas conquistas, mas por causa de Cristo, da justiça de Cristo.

P.: Esses ensinamentos libertaram as pessoas? R.: É a liberdade total, tanto que Lutero escreve um pequeno livro que considero um dos livros mais importantes de toda a história dos cristãos – DA LIBERDADE CRISTÃ – no qual afirma: “O cristão é um senhor livre de todas as coisas e não está sujeito a ninguém.” Isso quer dizer: Quem é aceito por Deus, somente pela graça, já não precisa conquistar méritos curvando-se diante dos chefes de igrejas, dos governadores e seus exércitos, dos príncipes autoritários, dos senhores feudais exploradores, das leis opressoras de políticos corruptos, dos quebra molas nas ruas, das fofocas dos vizinhos, dos tabus das picadas, dos controles sociais, dos moralismos baratos das pequenas cidades e picadas, dos preconceitos que apontam o dedo, das autoridades policiais, ou de qualquer autoridade no céu e na terra, e nem precisa tremer de medo do castigo de Deus.

P.: Esses ensinamentos não levaram à libertinagem? R.: Pelo contrário. A graça de Deus, acolhida pela fé, é uma energia positiva. Ela age na vida das pessoas de dentro para fora; enche as pessoas de vontade para fazerem o bem, assim como o elogio, que fazemos a um jovem, estimula-o para prática do bem – só o amor e só a gratuidade libertam e constroem, poderíamos dizer. É liberdade DE e liberdade PARA. É liberdade que voa com duas asas: A asa da fé que acolhe a aceitação libertadora para si, por um lado, e a asa do amor libertador que aceita os semelhantes sem perguntar pelos seus méritos, por outro lado.

P.: Mas essa liberdade diante de policiais e quebra molas não vai longe demais? R.: Sendo que as pessoas vivem em sociedade, elas farão o bem, agora, espontaneamente, não mais por obrigação, não porque a lei exige, não para acumular méritos, não por medo das autoridades ou do inferno, mas porque tem alegria na prática do bem em benefício da coletividade. Farão o bem DE DENTRO PARA FORA, espontaneamente, não mais de FORA PARA DENTRO, por imposição de leis e regras. Agora, as pessoas conseguem ser boas, espontaneamente, porque sabem que já não precisam ser boas por obrigação ou por medo. Quando nos sabemos aceitas por graça já não precisamos lutar para ser aceitos. Quando Deus nos torna pessoas boas, já não precisamos ser boas e, por isso mesmo, podemos e queremos ser boas. Agora, espontaneamente, queremos viver de tal maneira que não necessitamos temer os policiais; queremos reduzir a velocidade a tal ponto que não precisamos mais do controle dos quebra molas. Por esse motivo, Lutero acrescenta: “O cristão é um servo fiel de todos por amor.” Ou seja, a pessoa cristã é pessoa livre para amar, para servir, para praticar o bem em benefício da coletividade e por isso aprende a colaborar  espontaneamente  em tudo que beneficia o bem comum, em tudo que constrói a sadia convivência entre as pessoas. Assim, em liberdade espontânea, respeitarão também os policiais e os quebra molas.

P.: E essa liberdade cristã repercutiu na população daqueles tempos? R.: Repercutiu tanto que foi um dos estímulos em vários grandes movimentos de libertação que aconteceram na história da humanidade. Esteve presente, em diferentes graus de intensidade, na Revolução Francesa, na Independência dos Estados Unidos, na elaboração das leis de proteção do trabalho, nas várias etapas da conquista dos direitos individuais que culminaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, dos quais todos usufruímos até hoje.

P.: Podemos, assim, dizer que o lema “somente a graça” repercutiu também fora dos muros da Igreja? R.: Ele perpassou e ainda perpassa (sem que nós, talvez, o percebemos) todas as esferas da vida humana, também em nossos dias. Sendo que o tema é amplo, vou usar o exemplo de Schwäbisch Hall, uma pequena cidade na Alemanha, de aproximadamente 37.000 habitantes, onde moro. Em Schwäbisch Hall, professores e professoras comemoraram a Reforma, porque o Reformador dessa cidade e da região – Johannes Brez –, quando foi chamado pelos líderes comunitários, em 1521, exigiu o seguinte: “Nenhum centavo será investido em muros, cercas ou armas, antes que todas as crianças de todas as famílias estejam frequentando a escola”. Essa decisão valorizou o ensino e professores e professoras alemães, algo que repercute até os nossos dias. Naqueles mesmos anos, o Brasil iniciava uma economia baseada na escravidão, enquanto as escolas públicas foram proibidas pela Coroa de Portugal até o ano de 1827. Lutero, por sua vez, escreveu duas cartas aos governadores territoriais que apoiaram a Reforma, pedindo que construíssem escolas para todas as crianças de todas as famílias, o que alavancou o desenvolvimento e a qualidade de vida nas regiões protestantes do norte europeu.

P.: A Teologia da Graça também teve influência sobre o trabalho profissional das pessoas? R.: Em Schwäbisch Hall também os sindicatos de trabalhadores celebram os 500 Anos da Reforma, porque antes da Reforma entendia-se que somente os clérigos serviam a Deus, ou seja, os bispos, os padres, os monges, as freiras. Foi por causa desse entendimento que o jovem estudante de direito Lutero, quando foi surpreendido por um temporal com raios, prometeu: “Salva-me, Santa Ana, e vou ser monge” (vou servir a Deus no convento, vou ser uma pessoa boa). Mais tarde, ele diria: “Todo trabalho realizado com responsabilidade é serviço a Deus”. Ele exemplificou essa afirmação com a menina que balança o berço para ninar o irmãozinho ou a agricultora que limpa o estábulo depois da ordenha. Ambas estão servindo a Deus, porque estão realizando um trabalho que favorece outras pessoas. O Reformador também criou o termo BERUF = VOCAÇÃO, para dizer que Deus concede habilidades às pessoas e que as vocaciona, por meio dessas habilidades, para servirem aos seus semelhantes. Esses ensinamentos criaram novo conceito do trabalho, valorizaram-no e valorizam os trabalhadores de todos os ofícios.

P.: E a prática política? R: Lutero escreveu duas cartas aos conselhos das administrações territoriais para dizer-lhes que o poder que eles tinham era um poder CONCEDIDO por Deus para SERVIREM O POVO e não para SE SERVIREM A SI MESMOS e aos SEUS PARES. Além disso, se todas as pessoas são aceitas por graça somente e não por seus méritos “porque todos pecaram e carecem da graça de Deus” – Carta aos Romanos 3.21 – então todas as pessoas estão no mesmo nível de dignidade. A justificação por graça e fé não admite a diferença entre os “super dignos”, a quem tudo deve ser concedido, e os “indignos”, de quem tudo pode ser tirado. Todas as pessoas, é verdade, são diferentes umas das outras, mas todas têm a mesma dignidade para serem aceitas (porque a dignidade é atribuída por graça, não conquistada).

P.: Se concordarmos que todas as pessoas são portadoras de dignidade atribuída por graça, como essa convicção poderia mexer com a realidade brasileira? R.: A dignidade atribuída por graça não admite a gritante e escandalosa desigualdade que temos no Brasil, porque todas as pessoas são portadoras de dignidade em igual nível. Se a dignidade é concedida e não conquistada, então não podemos fazer distinção entre pessoas portadoras de dignidade maior e pessoas portadoras de dignidade menor. A dignidade sempre tem o mesmo valor, por ser um presente, por ser concedida e por ser renovada por Deus em gesto de gratuidade. Se a aceitação fosse por mérito, uns teriam méritos maiores e outros teriam méritos menores. O lema “somente a graça”, portanto, não admite a divisão em centro luxuoso e periferia miserável, em palácios e barracos, em bairros nobres e favelas miseráveis. Para o Brasil, isso significa que governo bom é o governo que elimina a grande distância entre riqueza que esbanja, por um lado, e pobreza que condena à fome, por outro lado; governo bom é governo que cria projetos que reduzem a desigualdade social; que cria projetos de integração que reduzem o fosso social cruel e vergonhoso que herdamos da escravatura e que é perpetuado no decorrer da história. Um fosso social que é mantido e renovado por uma classe dirigente do velho naipe (que tem nomes de famílias que conhecemos desde a história do Império), sempre infiel ao povo, extremamente hábil para permanecer no poder, seja por manipulação da opinião pública, seja por golpes brancos (quando esses bastam), ou por golpes armados (quando a manipulação não basta).

P.: Uma palavra final, pastor? R.: O tema é vasto. Posso dizer que em Schwäbisch Hal comemoramos a Reforma em todos os setores da sociedade: Comemoramos com palestras de diretores de grandes empresas que analisam a ética do empresário, baseada na teologia da graça; comemoramos com grandes concertos, porque os Reformadores deram lugar aos hinos e à música nas celebrações litúrgicas Lutero mesmo compôs mais de 40 hinos, e logo foi imitado por outros grandes compositores, a exemplo de Paul Gerhardt. Também foi seguido por músicos da qualidade de Johann Sebastian Bach e Felix M. Bartholdy que levaram a fé dos reformadores até o povo através da arte da música. Comemoramos a Reforma com palestras proferidas por psicólogos e psiquiatras que analisam o significado da aceitação por graça para seus pacientes em crise. Eu mesmo fiz palestra sobre a presença da Teologia dos Reformadores no Brasil, convidado pela direção de uma cooperativa de agricultores do Sul da Alemanha. Para não me delongar, posso encerrar e dizer que a aceitação por graça somente – “sola gratia”- quando aceita pela fé somente – “sola fide” – como ensinam as Escrituras Sagradas – “sola scriptura” – e que nos trazem o Evangelho Libertador de Jesus Cristo – “solus Christus” [somente Cristo], perpassa todas as áreas do entendimento, do sentimento, das emoções e das atividades humanas. Em tempos de ecumenismo, quero e preciso acrescentar: Essa é a fonte espiritual, da qual eu bebo, mas respeito as outras fontes de espiritualidade, das quais outras pessoas bebem. Respeito-as, desde que sejam libertadoras para todas as pessoas e promovam a igualdade social, à qual todas as pessoas têm direito; desde que promovam a vida digna que o Evangelho promete (“eu vim para que tenham vida e vida em abundância” anuncia Jesus Cristo – João 10.10); desde que promovam a socialização dos recursos que a natureza coloca à disposição de todos os filhos e filhas de Deus; desde que promovam a socialização da riqueza produzida pelos braços humanos, através de salários justos, impostos justos e prestação de serviços públicos que promovam justiça social e vida digna.

P.: Esquecemos de falar de corrupção. R.: Respondo em forma de pergunta: Quando vereadores luteranos compram votos; quando prefeitos luteranos são flagrados em atos de corrupção; quando parlamentares luteranos fazem carreira política para servir a si mesmos, às suas famílias e às suas classes sociais; quando famílias luteranas do centro desprezam e odeiam os pobres da periferia, ou quando um político gaúcho luterano, de mentalidade escravagista e racista, vê nos indígenas e nos negros a origem de todos os males da sociedade brasileira, será que essas pessoas ainda podem usar para si o adjetivo “luterano”, mesmo quando frequentaram o Ensino Confirmatório, mesmo quando pertencem a uma Comunidade Luterana e mesmo quando celebrem orgulhosamente os 500 Anos da Reforma?

Jornalistas Marco Mallmann, do Jornal INFORMATIVO, e Edson Schaeffer, da FOLHA POPULAR, ambos de Teutônia/RS.

Postado em: 04/12/2017.

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