Que sejam outros quinhentos!
Outros quinhentos, em comunhão com as pessoas excluídas, não mais apartados das pessoas excluídas, para que não troquemos o melhor – a TEOLOGIA DA CRUZ, pelo pior – a TEOLOGIA DA GLÓRIA.
O Apóstolo Paulo entende Deus a partir da cruz de Jesus Cristo. A vontade de Deus, o amor de Deus e o poder de Deus, no entendimento de Paulo, podem ser lidos na cruz. Deus abaixa-se até a humilhação, até o sofrimento da cruz porque ama o que é indigno de ser amado. Na cruz podemos conhecer até onde vai o amor de Deus. Vai até o estágio mais baixo da existência humana, nela Deus assume a dor e as condições de quem sofre como Jesus Cristo sofreu.
Quando o reformador Martim Lutero desenvolve sua Teologia da Cruz, ele comunga a teologia do apóstolo Paulo e ensina seu entendimento de Deus. Aliás, Lutero toma a cruz de Jesus Cristo como centro em torno do qual desenvolve toda sua teologia, o que se evidencia, entre outros, na sua leitura do Magnificat (Lucas 1.46-55). Para Lutero, o Cântico de Maria revela-nos que Deus gosta de olhar para baixo, para as pessoas que são pobres, que não têm poder, que nada são, pois escolheu a humilde e desconhecida Maria para ser mãe do seu enviado.
Deus ouve o clamor do seu povo (Êxodo 3.7), ouve o grito dos que sofrem, assume sua dor, se abaixa e dá-se a conhecer na mais humilhante e dolorida condição humana, a cruz. Em consequência disso, seu enviado Jesus Cristo convida seus seguidores e suas seguidoras a tomarem sobre si a sua cruz, conforme lemos em Mateus 16.24-26: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa, achá-la-á. Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?”
Queremos viver a Teologia da Cruz no contexto brasileiro, inseridos e inseridas na realidade brasileira. Por isso, não queremos buscar a Teologia da Cruz como encomenda fechada, pronta e acabada, de além-mar. Não queremos acolhê-la como um pacote que pudesse ser aberto, em todos os lugares, com o mesmo canivete, seja por alemães ou canadenses, por noruegueses ou congoleses, por dinamarqueses ou nigerianos. Queremos acolhê-la, mas não importá-la como se aqui não tivéssemos contexto próprio. Não queremos incorrer nesse erro, porque temos o nosso contexto específico que produz e apresenta suas próprias cruzes. Como membros da IECLB queremos abrir o pacote com o canivete que afiamos em nosso próprio rebolo. Em outras palavras: como membros da IECLB queremos ler a Teologia da Cruz a partir da realidade brasileira, com olhos de brasileiros e brasileiras, sob a perspectiva da história brasileira, atentos ao contexto brasileiro. Queremos, portanto, em primeiro lugar, dirigir nosso olhar para a realidade que nos cerca, analisá-la e entendê-la. Em momento segundo, então, poderemos jogar a luz da Teologia da Cruz sobre essa realidade e ver o que ela nos ensina para nosso contexto concreto. A DESIGUALDADE SOCIAL A realidade brasileira apresenta-se escandalosamente dividida. Na leitura que fazemos do nosso contexto queremos destacar este aspecto: o largo fosso social que divide nossas cidades em centro e periferia, em pessoas privilegiadas e pessoas esquecidas. Queremos destacar essa brutal desigualdade social como o problema maior da sociedade brasileira porque vemos nessa divisão uma espécie de matriz do mal que gera muitos outros males. Secular, cruel, resistente às transformações históricas, a desigualdade social tem sua origem nos quase quatrocentos anos de escravatura e vem sendo perpetuada em todos os momentos nodais da história brasileira. Darcy Ribeiro, em seu conhecido livro O Povo Brasileiro, aponta “uma classe dirigente sempre infiel ao povo”, hábil nos conchavos, hábil na manipulação, hábil na difusão de meias verdades ou de mentiras inteiras e, quando esses recursos não bastam, disposta a chamar a repressão armada. Portanto, temos uma classe dirigente, conforme Ribeiro, hábil e sem escrúpulos para manter o seu poder e seus privilégios. A desigualdade social assim perpetuada se revela como o problema número um da sociedade brasileira, por ser sementeira e origem de inúmeros outros males, como veremos:
- Por que razão a faixa abonada da sociedade e os políticos que ela elege haveriam de empenhar-se por um sistema de saúde pública de qualidade se têm recursos para tratar-se em hospitais especiais, com planos de saúde especiais, ou nos melhores hospitais de outros países?
- Por que razão a faixa abonada da sociedade e os políticos que ela elege haveriam de empenhar-se por um sistema de educação pública de qualidade se têm condições de matricular seus filhos em caros educandários particulares ou levá-los para estudarem no exterior, enquanto a rede pública faz greve de meses por falta de investimento neste setor?
- Por que razão a faixa abonada da sociedade e os políticos que ela elege haveriam de empenhar-se por um sistema de transporte coletivo de qualidade se têm condições de contratar motoristas e pilotos para seus carrões, helicópteros e jatinhos particulares?
- Como os filhos e as filhas da faixa abonada da sociedade haveriam de aprender a cuidar do lixo que produzem, do meio ambiente e de suas próprias sujeiras, se existem as empregadas domésticas que ajuntam o que eles jogam fora; se ouvem as próprias mães e pais aconselharem: “deixa, querido, depois a empregada limpa”? • Por que razão os empresários – os inescrupulosos e corruptos entre eles – e os políticos que elegem haveriam de temer a lei que proíbe a corrupção se têm poder de comprar a justiça, e se as faixas empobrecidas da sociedade são manipuláveis ou não possuem instrumentos políticos para combater a desonestidade?
- Como corrigir o caos no trânsito se os primeiros automóveis que transitaram no Brasil foram importados pelos donos das terras e das estradas; se eles usaram os veículos como ostentação do seu status e deram a eles a mão preferencial em todos os terrenos; se essa mentalidade perpetua a mão preferencial dos carros sobre os pedestres, como quem diz: “sai da frente, que lá vem o patrão!”?
DESIGUALDADE E VIOLÊNCIA Não se pode construir uma sociedade harmoniosa com exclusão social; não é possível encontrar harmonia em uma sociedade que concede a uns a maior parte e tira de outros tudo o que é possível. A harmonia será assim impossível porque a paz e a justiça social andam de mãos dadas como gêmeas, e uma não sabe existir sem a outra, conforme já alertavam os poetas mais atentos que viveram há milhares de anos antes de nós (Salmo 85.10). Não se pode construir a paz social quando uns viajam a Miami especialmente para comprar supérfluos e outros, muitos outros, buscam nos depósitos de lixo os alimentos para seus filhos. Não será possível construir a paz que almejamos com a divisão em condomínios fechados e favelas miseráveis, em bairros nobres para palacetes e terrenos alagadiços para casebres de trapos e farrapos. Pessoas marginalizadas e não integradas são candidatas à criminalidade, das quais os centros urbanos preferem se apartar com cercas, muros, cães ferozes e guardas particulares, em vez de socializar recursos e apoiar políticas públicas de inclusão social. Desigualdade social sempre leva a situações dramáticas, como nos mostram as cenas de caça humana nos morros do Rio de Janeiro. A desigualdade que separa o centro bem cuidado da periferia esquecida rompe o cimento que une a sociedade, que possibilita a convivência sem medos. “Enquanto houver desigualdade social acentuada também haverá criminalidade intensa” constata Don Winslow, jornalista e autor que pesquisa a criminalidade em Nova York. Conforme outra pesquisa recente, essa feita pela equipe francesa de Thomas Piketty, o Brasil está entre os dez países de maior desigualdade social. Entre 1926 e 2016, constata, sempre houve 1% de pessoas abastadas que detinham entre 20% e 25% das riquezas. Entre 2002 e 2014, dizem os mesmos pesquisadores, houve ligeira melhora de qualidade de vida na faixa mais pobre da sociedade brasileira, mas permaneceu o fosso social, porque os abastados dispararam com suas rendas.
Quando embarcamos no TRENSURB da Estação São Leopoldo em direção a Novo Hamburgo e olhamos para a direita, poderemos ver um mar de casebres miseráveis onde moram centenas de famílias. Quando viajamos pelo asfalto que atravessa as lavouras de trigo e soja da região em torno de Palmeira das Missões, interior do RS, vamos descobrir de onde vieram essas famílias. Nas antigas sesmarias daquela região, em terras tomadas por aventureiros paulistas depois que os indígenas das Missões foram massacrados ou expulsos, não mais enxergamos as casinhas de meeiros, de agregados, de posseiros, de empregados, ali mantidos depois da abolição da escravatura, como mão de obra barata, sem direitos e sem carteira assinada. Tudo foi transformado em grandes plantações de soja!
Assim aconteceu em todas as regiões da economia latifundiária até que essas famílias foram expulsas, a partir de 1964, quando o governo civil-militar decidiu pela concentração das terras, pela agricultura de áreas trabalhadas por grandes máquinas, pelo cultivo de monoculturas para exportação e pelo consequente êxodo rural (veja os planos econômicos do superministro Delfim Neto). As vítimas do êxodo rural vieram totalmente despreparadas para a vida nas cidades. Não trouxeram formação profissional e eram analfabetos ou mal sabiam rascunhar o seu nome. Não tinham dinheiro para comprar um terreno, nem poupança e nem crédito para financiá-lo. Foram demitidos sem indenização, abandonados e humilhados, a esperar apenas o desprezo, a humilhação, a hostilidade, o choro da autoestima ferida, o arrocho salarial (quando o salário mínimo chegou a valer apenas 30 dólares). Tinham direito somente ao “sem lugar”, a despejos repetidos, à falta de perspectivas, ao sofrimento permanente, ao calor insuportável e ao frio insalubre dentro dos barracos inabitáveis, ao cassetete da repressão policial, já que a polícia era e continua sendo vista como uma instituição criada para proteger as “famílias de bem” do centro contra os “maus elementos” das periferias.
O êxodo rural, programado para disponibilizar mão de obra barata aos investidores, sobrecarregou as administrações municipais em todas as pautas dos seus orçamentos. Em apenas 20 anos, durante os governos militares, inverteram-se as proporções populacionais entre campo e cidade. Se a população do campo contava em torno de setenta por cento, antes de 1964, chegou a trinta por cento no fim do período ditatorial. Hoje a população urbana ultrapassa oitenta por cento dos habitantes do país, como resultado das enormes mudanças econômicas e do contínuo êxodo rural sempre caótico e causador de sofrimento inominável para as vítimas. No mesmo período, com a política de concentração de terras, os povos indígenas foram expulsos das suas terras originárias, para lugar nenhum, como se não pertencessem a esse planeta, sem preparo para encontrarem sustento e sem apoio para possibilidades de vida digna na nova realidade que foram forçados a viver.
Ao nos propormos a refletir a Teologia da Cruz, quando comemoramos os 500 Anos da Reforma (1517-2017), não queremos fazer essa reflexão como se fosse legítimo apartar-nos dos nossos semelhantes que vivem pesadas cruzes nas periferias pobres da nossa sociedade. Não queremos ignorar brasileiros e brasileiras que carregam a cruz humilhante da exclusão social; não queremos desviar o rosto quando as cruzes dos barracos querem ferir nossos olhos. ETAPAS DA VIOLÊNCIA A desigualdade social é sementeira da violência e da criminalidade. Não afirmamos com isso que os pobres são moralmente inferiores ou mais violentos. No entanto, sabemos que a percepção da injustiça e da marginalização, por parte de quem as sofre, propicia revolta e reações violentas de desespero, geralmente impensadas e aleatórias. Quando, por exemplo, pessoas jovens pobres não conseguem integrar-se, quando sentem-se excluídas, quando não conseguem competir com pessoas abastadas e nem comprar o que essas compram, podem ser impelidas para a criminalidade.
Gerhard Minaard é um dos editores da revista alemã Junge Kirche e pesquisa a violência em focos de conflito social na Europa. Ele constata que a exclusão social é a primeira violência. Para Minaard, está aí a origem da violência social. Refere o autor: “Quando penso nos muitos jovens de vida difícil que lutam para sobreviver nas periferias da sociedade, confundem-se os limites entre atores e vítimas. A violência que esses jovens sofreram e carregam dentro de si raramente se torna proativa. São almas destruídas em corpos massacrados demasiadamente frágeis” (Junge Kirche I, 2015, p. 57).
A primeira violência, portanto, constata Minaard, é praticada por aquela parcela da sociedade que exclui outras parcelas. No caso das mulheres – continua Minaard – a violência que sofrem por causa da marginalização geralmente explode para dentro, na forma de baixa autoestima, de depressão, de displicência com a própria imagem, de sentimentos de culpa, de autoflagelo, de suicídio, de exagerada necessidade de afeto, o que pode levar à promiscuidade e à prostituição. No caso dos homens, a violência sofrida com a marginalização costuma transformar-se em violência revidada, na maioria das vezes aleatória, sem organização, sem soluções pensadas e refletidas que buscassem saídas da situação.
Minaard vê como segunda violência essa reação das mulheres contra si mesmas e essa reação de revide dos homens contra terceiros.
A terceira violência, ainda conforme Minaard, é a repressão policial. No caso brasileiro, um verdadeiro enfrentamento que, geralmente, termina num “mata ou morre”. Continuando nossa reflexão, podemos acrescentar uma quarta violência: a versão dos fatos. A leitura que as pessoas do centro fazem dos fatos relacionados com as populações das periferias costuma ser também violenta, por ser parcial e ficar muito longe da imparcialidade, uma vez que o jornal é do centro, a rádio é do centro, a televisão é do centro, as leis foram feitas por legisladores do centro, os juízes veem a sociedade a partir do centro, os jurados são escolhidos entre pessoas que moram no centro e, portanto, a versão dos fatos será formulada na perspectiva do centro, sempre em prejuízo das pessoas excluídas da periferia.
Sabemos que a primeira violência, como Minaard a descreve, ou seja, a violência da exclusão sofrida pelas pessoas que são empurradas para a margem, não produz muitas manchetes nos jornais e nem fornece fotos chamativas para serem mostradas nas telas da televisão, porque é uma violência ignorada, esquecida, silenciosa, mantida à distância, implicitamente justificada. A sociedade que exclui costuma dar voltas largas em torno da sua parte excluída, por exemplo, das favelas; costuma passar em alta velocidade pelos barracos de papelão e lona às margens das estradas; não vê as moradas debaixo das pontes quando passa por cima delas; não costuma visitar os jovens sem perspectivas e sem futuro nas prisões infectas e superlotadas. Estabelecida e bem acomodada, cercada de muros e arames, guardada por cães ferozes e sete chaves, privilegiada e bem servida, bem relacionada com o poder e influente, a sociedade que exclui e marginaliza fecha os olhos para o sofrimento silencioso nas margens da miséria, onde falta tudo o que ela mesma esbanja.
Mais fácil será apontar para as pessoas que ela exclui e acusá-las de culpadas da sua própria sorte. O centro que exclui gosta de culpar a violência que vem como revide da periferia e que assusta, compreensivelmente. Denuncia a criminalidade e exige maior repressão, mas não gosta de analisar a origem, mesmo porque ali encontraria suas próprias impressões digitais; porque a origem está nela mesma, na sociedade do centro, uma vez que ela pratica o “apartheid” social, não menos escandaloso que o “apartheid” racial da África do Sul que tanto condenávamos.
Bem antes de admitir que as pessoas excluídas sejam nossas vítimas, olhamos o mundo a partir do centro e apontamos o dedo acusador para as periferias, para as margens feias da cidade que nós mesmos formatamos. Apontamos o dedo acusador para a marginalização que nós mesmos promovemos, apoiamos com nossas opções ou permitimos com nossas omissões. Mais fácil é para nós buscar nas vítimas as causas das mazelas e não em nós mesmos que as cultivamos e perpetuamos. Ali, na miséria dos casebres, no desespero das choupanas, na brutalidade dos despejos, na humilhação das algemas, na insegurança dos loteamentos clandestinos, no luto pelos soterrados das ladeiras que desmoronam, nos lamentos dos barracos alagados nas enchentes, no desespero das mães que choram os filhos eliminados pela polícia, ali a primeira violência torna-se duradoura e persistente, carcome vidas, nega saídas, destrói esperanças e gruda-se às vítimas impiedosamente, para acompanhá-las do nascimento até a morte, do útero materno até a sepultura. Essa primeira violência gera poucas notícias porque preferimos ignorá-la. Já a segunda violência, quando pessoas da margem reagem, assaltam ou arrombam casas, sequestram ou matam, essa segunda violência gera manchetes garrafais e gritantes, em preto e branco ou coloridas, em todos os meios de comunicação, porque apresenta-se ameaçadoramente espetacular, dramaticamente assustadora, perigosamente próxima e porque, essa sim, interessa ao centro. TEOLOGIA DA CRUZ Nenhuma forma de violência pode ser justificada. Também a segunda violência, como reação à primeira violência, ou seja, o revide à violência sofrida, como Minaard a descreve, não pode ser justificada. A única forma de encarar a violência é procurar formas de superá-la. Para isso, é preciso entendê-la desde a sua origem. Tanto mais é preciso entender a violência quando queremos fazer uma leitura da Teologia da Cruz no violento contexto brasileiro, porque a violência e a criminalidade são partes integrantes do nosso contexto, de nossa cruz hoje. Quanto melhor entendermos as causas sociais da violência que nos assusta, tanto mais abandonaremos os discursos sempre repetidos em nossas comunidades eclesiais e em nossos ambientes de espeto, carne e cerveja; discursos que se limitam à leitura reduzida de uma precária análise moralista; análise moralista que divide as pessoas em boas e más. Quanto mais entendermos a desigualdade social como sementeira de violência, tanto mais nos empenharemos com práticas que visam a estreitar o largo fosso social; tanto mais apoiaremos políticas públicas de inclusão social; tanto mais apoiaremos como governo bom um governo que promove a integração no lugar da secular divisão social; tanto mais denunciaremos a repressão, que costuma ser cruel e arbitrária contra as populações que foram feitas pobres por estruturas políticas e modelos econômicos.
A cruz foi o instrumento do Império Romano para executar pessoas condenadas à morte, principalmente as que eram vistas como rebeldes e agitadoras sociais. Também escravos flagrados em fuga eram crucificados. Em nossos dias, o madeiro em forma de cruz já não é usado para executar pessoas. Mas usamos o símbolo da cruz para descrever dois movimentos da dinâmica da violência:
- Descrevemos como cruz o sofrimento que alguém vive, indefeso, impotente, com a violência que outro lhe impõe. • Descrevemos como cruz o risco que alguém assume quando presta solidariedade a seu semelhante que sofre violência. Em outras palavras, o símbolo da cruz ilustra o risco que alguém assume de sofrer violência na tentativa de superar a violência que seu próximo sofre.
Conforme podemos constatar facilmente, o segundo movimento da dinâmica da violência que descrevemos com o símbolo da cruz lembra a crucificação de Jesus Cristo que assumiu a cruz para superar a cruz; que assumiu passar pela morte para vencer o poder da morte em todas suas infindáveis variantes; que se expôs à violência para superar a violência, que ofereceu sua vida em sacrifício para que não haja mais sacrifícios humanos, nem por motivos religiosos, nem por motivos sociais, nem por motivos políticos, nem por motivos econômicos.
As duas madeiras em forma de cruz, que a comunidade cristã adota como símbolo, portanto, tem significado duplo:
- As duas madeiras em forma de cruz que encontramos em todas as paisagens brasileiras representam, por um lado, a pesada cruz que Jesus Cristo carregou até o Gólgota; e representam a morte cruel que Jesus sofreu para superar as nossas cruzes. • Por outro lado, as duas madeiras representam a cruz que seguidores e seguidoras de Jesus Cristo arriscam sofrer individualmente ou que a comunidade cristã assume coletivamente por prestarem solidariedade a pessoas que sofrem, no empenho de superar o sofrimento delas.
Ainda falando em símbolos, podemos acrescentar, em outras palavras, que a cruz é, em primeiro lugar, o madeiro em que Jesus Cristo foi pregado com violência extrema; é a cruz que Jesus Cristo assumiu para vencer a violência com suas mil faces, pela submissão livre e libertadora, e não pelo revide.
Em segundo lugar, o madeiro em cruz simboliza o despojamento, o esvaziamento, talvez o sofrimento que a comunidade unida, em seguimento ao Crucificado, está disposta a carregar em solidariedade com aqueles e aquelas, cuja cruz querem superar, por exemplo, a cruz dos excluídos, dos presos em cadeias imundas (por serem pobres), dos famintos, dos injustiçados, dos esquecidos.
A Teologia da Cruz, quando compreendida como solidariedade praticada pela comunidade cristã em favor de brasileiros e brasileiras que sofrem a violência da exclusão social, poderá ser vivida como Teologia da Vida, como ressurreição para a vida, como vida que vence a morte, como luz que vence as trevas. Entendida assim, a ressurreição revela-se como juízo definitivo sobre a marginalização porque tira dela a última palavra; revela-se como juízo sobre todos os instrumentos políticos, econômicas, jurídicos ou psicológicos que as pessoas mais próximas das alavancas do poder acionam para dividir a população brasileira em “famílias de bem” e “maus elementos”, em pessoas às quais tudo é concedido, e pessoas às quais tudo é negado.
A Teologia do reformador Martim Lutero, tantas vezes lembrado e citado quando comemoramos os 500 Anos da Reforma, ensina que transformamos o melhor – A Teologia da Cruz – no pior – a Teologia da Glória, quando vivemos uma piedade que esquece a solidariedade simbolizada pela cruz e quando contabilizamos, como méritos de fé, nossa sabedoria, nossa boa imagem, nosso poder, nosso sucesso, nossas elogiadas realizações, nossos bens e nossas posses. Pela cruz que assumimos em solidariedade, no entanto, seremos libertados do “eu” aprisionado pela ansiosa busca de méritos. Por isso, para seguidores e seguidoras de Jesus Cristo e para a comunidade cristã, o caminho a ser trilhado será o caminho da cruz e não o caminho da glória. Pois, é o caminho da cruz que insere a comunidade cristã na comunhão do Cristo morto na cruz e ressurreto para a vida. Em outras palavras: a união com Cristo acontece na cruz e na ressurreição, em todos os aspectos de ambos os polos. Nessa união também está inserido o risco da cruz que assume quem solidariza-se com as pessoas excluídas; está inserida a ressurreição nas práticas de combate à exclusão e que alcançam vitória sobre ela.
A Teologia da Cruz é a forma de conhecer e manter comunhão com aquele que é “o verbo que se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (João 1.14), que olhou para baixo, que desceu até o coxo de animais no estábulo, que sempre veio da periferia e se identificou com a periferia, seja nascido de mãe da periferia, seja deitado em estábulo da periferia, seja acolhido por pastores peões da periferia, seja chamando discípulos pescadores da periferia, seja visitando doentes da periferia (que eram coxos, cegos, surdos, paralíticos, lunáticos e endemoninhados, todos impuros para o culto celebrado no centro), seja ensinando teologia pensada na periferia para mulheres e homens sem qualquer fama, seja por fim crucificado na periferia do Gólgota.
Que venham, pois, os outros quinhentos! Agora, em comunhão com as pessoas marginalizadas, não mais apartados das pessoas excluídas, que excluímos com cercas, muros ou mil chaves; que excluímos com ideologia meritocrática e análises moralistas. Sejam outros os próximos quinhentos, para que preservemos o melhor – a Teologia da Cruz – e não a troquemos pelo pior – a Teologia da Glória.
O texto traz o resumo das aulas do componente curricular Teologia Denominacional, de Faculdade EST, São Leopoldo, RS, em 27/10/2017, sob a responsabilidade do Prof. Dr. Rodolfo Gaede Neto.
O tema foi trazido pelo professor convidado P. Silvio Meincke 1957-61.
O texto foi redigido com a colaboração da estudante Simoni da Silva Emerick Runge e do estudante Mauricio Klug de Oliveira. Posteriormente foi aprovado para publicação pelo grupo de discentes participantes da aula.
Mauricio Klug de Oliveira, Rodolfo Gaede Neto e Simoni da Silva Emerick Runge.